OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


15.1.04  

A quarta via.

Em tempos de crise política e de crise da política, muita gente desespera. Quais as formas mais comuns de atenuar o desespero face à aparente dificuldade de transformação social ou face ao aparente retrocesso de conquistas? Uma delas, à esquerda, é exacerbar o espírito revolucionário, de cariz milenarista, desejoso de transformar tudo num só dia, por decreto e com base em dogmas. Uma das suas variantes é a acção violenta, vulgo terrorismo. Outra, nem à direita nem à esquerda, é refugiar-se em zonas de identificação "provadas" no passado: a religião (assim tornada em fundamentalismo), a etnicidade (tornada em nacionalismo ou racismo), etc. Outra ainda, à direita, é entrar numa espécie de derrotismo conservador e cínico: se nada muda, é porque as coisas sempre foram assim e o melhor é obedecer e, de caminho, tirar proveito.

Há quem diga que não é preciso ficar prisioneiro da escolha entre a acção desesperada (de revolucionários e fundamentalistas, à esquerda ou à direita) e a desistência. Essa terceira via ficou conhecida como "reformista": paulatinas mudanças, passo a passo, melhorariam a sociedade. Mas, parte da nossa crise actual advém do facto de as "terceiras vias" terem falhado: ou porque foram massacradas, como no caso do estado providência, ou porque eram "só paleio", como no caso dos PSs e partidos social-democratas europeus em geral.

Talvez haja uma quarta via ou quadratura do círculo: quando a pulsão revolucionária é domesticada e orientada para a acção reformista mas com a consciência de que o que é necessário é criar novas hegemonias, e não apenas legislar. Isto é, tornar evidentes e de senso comum para números maiores de pessoas que certas coisas são inalienáveis, que certas conquistas não podem ser deitadas fora, que certas coisas novas são absolutamente equivalentes a mais progresso e bem-estar para mais gente. Na política, o Bloco faz um bocadinho disto; o PS deveria fazer muito mais; talvez os renovadores comunistas venham a fazer. Mas é aos movimentos sociais e à produção cultural e mediática que compete a tarefa maior: contaminar as vontades e as mentes.

mva | 17:26|