OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


28.1.04  

Deixem-me falar da morte.

A minha mãe, que tem 70 e tal anos, telefona-me a dizer que está muito baralhada com as notícias da morte do futebolista. Diz-me que se sente apreensiva e nervosa - não só porque o facto a impressionou como por ter alguns problemas cardíacos e recear que lhe aconteça algo de semelhante.

Fiquei imediatamente em estado de ira. Não consigo perceber os argumentos de quem aceita com facilidade a "onda de emoção" que "varre o país". Não duvido por um minuto que é trágico sempre que alguém morre fora de horas. Mas não consigo deixar de ligar o "caso Fehér" a três factos: ter sido transmitido em directo na TV; ter sido aproveitado até à exaustão obscena; e ter a importância que tem por causa da massificação do fenómeno futebol. Até há dias eu nem sequer ouvira falar do nome do malogrado jogador. Mas muita gente parece querer impor-me que não vivo neste mundo, só porque não partilho este "consenso" de que o futebol é importante; ou esta equiparação entre o prazer que, aceito, o trabalho dos jogadores pode dar aos adeptos, e as figuras de heróis, de pessoas que contribuiram com algo para entender melhor o mundo, criticá-lo, representá-lo artisticamente - ou transformá-lo.

Vi o meu pai morrer lentamente de cancro o ano passado. Há anos atrás lidei com a situação de uma criança minha conhecida que morreu num acidente de carro aos 5 anos. A minha infância ficou marcada pela morte de um primo direito aos 12. E estou cheio de casos de conhecidos e próximos que morreram aos vintes, aos trintas, aos quarentas: nas estradas, de cancro, de sida, suicidando-se ou de morte súbita - exactamente como esta. Colocar-me fora da "onda de emoção" não é mostrar insensibilidade perante a morte; nem dizer que os outros só são sensíveis porque a TV e a hegemonia do futebol lhes diz para serem.

É simplesmente distinguir - o primeiro passo de qualquer exercício intelectual/emocional. E o que eu sinto visceralmente é que estão intelectual e emocionalmente a enganar-me (isto é, a impedir as condições para a distinção) com esta operação publicitária.

No meio disto, o episódio com a minha mãe não é um episódio do normal problema de gestão de emoções relacionadas com a morte: é um "problema" induzido pela campanha.

mva | 16:43|