15.1.04
Ampulhetas?
O Público de hoje refere duas teses de mestrado sobre questões de sexologia e evolução. Numa delas, repetem-se os disparates do costume: que os corpos femininos em forma de ampulheta (sic!) continuam a atrair mais os homens e que os corpos masculinos que denotem força continuam a atrair mais as mulheres. Porquê? Porque os primeiros indiciam fertilidade e os segundos capacidade de protecção e jeito para a caça.
Isto não é ciência, é ideologia (a Natureza é uma política - basta ver o canal da National Geographic e ouvir descrições de animais como "mães", "famílias" e disparates do género). O desespero com a fragilidade das construções de género e sexualidade leva a isto - o desejo obsessivo por provar que somos animais, que pouca coisa muda com a História e a cultura. Os jornais pegam facilmente nisto (quantas teses de mestrado se fazem neste país por dia? Dezenas!) porque sabem que o público quer respostas para a sua ansiedade: a ansiedade de ninguém se sentir totalmente encaixado nos padrões de género e de sexualidade.
Mas além de ideologia é má ciência. O pressuposto de que, por razões naturais, as mulheres se definem em torno da reprodução e os homens em torno da produção (como no caso da caça entre os primeiros seres humanos) é contestadíssimo. Muito mais provavelmente trata-se de um anacronismo. Esta visão da evolução humana teve início no período de industrialização na Europa, em que a família nuclear com a divisão público/doméstico foi exacerbada. Período esse que coincidiu com o surto das disciplinas preocupadas em descobrir os primórdios da humanidade, com um modelo positivista que procura causas últimas (leia-se "naturais") para fenómenos sociais bem mais complexos e sujeitos à vontade e invenção humanas.
Entre a escrita deste tipo de dislates (e sua divulgação) e aparecer na TV um dia a fazer a maioria dos homens e mulheres, (hetero e homossexuais, com sexo de origem ou transexuais) sentirem-se anormais, vai um passo.
mva |
17:14|
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