OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


31.1.04  

Alice.



Justiça seja feita: passo a vida a azucrinar os textos da Helena Matos, mas hoje concordei com tudo o que ela disse. A mulher no tribunal cuja imagem não corresponde à de vítima vê a sua queixa de violência doméstica indeferida. As mulheres cultas e profissionais que pratiquem aborto devem ser punidas (como deu a entender Maria José Nogueira Pinto num debate na TV) ao contrário das pobres e incultas. E por aí fora.

Vivemos numa sociedade cheia de representações falsas. Entre nós isso é ainda mais forte, porque as elites usam os parâmetros internacionais e esquecem-se de tudo o que não aconteceu cá. Por exemplo, o feminismo é feio e coisa ultrapassada, "eu sou feminina mas não feminista" (aargh!). Só que Portugal é um país onde o feminismo praticamente não existiu. Ou: "os direitos das mulheres estão todos adquiridos". Mas a verdade é que a minorização das mulheres acontece constantemente no quotidiano, os salários são (ilegalmente) mais baixos que os dos homens no sector privado, etc. Ou: "não somos racistas", colonizámos mais humanamente e abolimos a escravatura primeiro. Mas a verdade é que o racismo manifesta-se como noutras paragens através da sua forma "subtil", as colonizações representam-se todas como especiais e melhores, e fomos dos primeiros a promover o comércio de escravos e vivemos intensamente dele. Ou: "Qualquer dia temos que lutar pelos direitos dos heterossexuais", os gays e lésbicas não têm razões de queixa, porque isso da orientação sexual é uma coisa privada. Mas a verdade é que a homofobia acontece todos os dias, os direitos não são iguais, e a heterossexualidade não precisa de protecção porque é hegemónica. Ou, por fim: "todos os cidadãos são iguais", quando as diferenças de classe são tão extremas que as chances de defesa em tribunal, de lidar com os especialistas ou a administração ou de conseguir mobilidade social através da educação (também ela diferenciada, em escolas para pobres e pretos, e escolas da opus dei - para usar exemplos extremos), demonstram que a democracia é uma formalidade e que a desigualdade aumenta ao mesmo tempo que o discurso sobre a igualdade se vai tornando numa fórmula vazia.



mva | 15:00|