OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


24.12.03  

X-mas

Lá fora o céu está azul e faz aquilo que os lisboetas, com o seu refinado sentido de humor, chamam "frio". Em Ilhéus, onde morei em tempos, homens de calções, chinelos e tronco nu bebem cervejas numa esplanada da praia, debaixo de um calor desumano. Algures no Médio Oriente, as pessoas vão à sua vida normalmente e vêem na televisão reportagens sobre a celebração do Natal em paragens distantes. Do Tibete a Madagáscar, da Coreia a Marrocos, milhões e milhões de pessoas sabem do Natal através da TV. Este ano - mas por acaso - o Hannukah judaico acaba no mesmo dia do Natal cristão. Cristão? Bem, os ortodoxos ainda vão esperar por Janeiro... E o Divali hindu já se celebrou em Outubro este ano. E os Muçulmanos têm outras personagens históricas para celebrar. Mas todos - tibetanos e judeus, malgaxes e hindus - são esmagados pela presença globalizada do Natal. Basicamente porque a globalização foi sendo feita por economias e estados-nação enquadrados por culturas religiosas cristãs: primeiro ibéricos, depois ingleses, logo americanos. Estes últimos criaram uma indústria das representações - a TV e o cinema. Assim, toda a gente no mundo tem acesso a imagens, canções, símbolos e, sim, emoções e sentimentos, do Natal americano: renas, pai natal, árvore de natal, neve, reencontros familiares etc. Mas há mais. Este Natal americano é, na verdade, o produto de uma síncrese gerada pelas imigrações e na qual as formas culturais escandinavas acabaram por ter mais importância que outras. Muito do Natal americano, agora globalizado, deve-se a suecos, basicamente.

Eu nasci numa família sem religião. O Natal celebrou-se sempre, todavia. Sem Menino Jesus, presépio ou missa do galo. Com consumo e reciprocidade, ou vice-versa. Com um misto de alegria e resignação - gosta-se da reunião das pessoas, não se atura o frenesi das compras. Mas sobretudo com um sentimento curioso, que é o do deslocamento: como se a realidade nunca chegasse aos calcanhares das expectativas criadas pelo modelo mediatizado e globalizado (não há neve lá fora!). Entre o afastamento religioso face a um Natal cristão e o afastamento cultural face a um Natal americano, sobra uma coisa esquisita que se quer ultrapassar rapidamente com uma festa de passagem de ano, um regresso à normalidade, o dia maravilhoso em que os funcionários da câmara começam a retirar as iluminações...

Ao menos se isto fosse mesmo hemisfério sul e pudessemos fugir para a praia...


Picado de um mail dum amigo: christma.exe

mva | 15:44|