OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


16.12.03  

Relatório Secreto do Comité das Nações Unidas para a Promoção da Racionalidade e da Liberdade

«Num pequeno país da periferia da Europa, um bando de sacerdotes de uma obscura seita, a ICAR - Igreja Católica Apostólica Romana (não confundir com IURD) desautorizou um dos seus membros por ter dito que o aborto poderia ser descriminalizado. Os feiticeiros - todos homesn e voluntários de uma estranha forma de sexualidade, conhecida como "abstinência" - são os herdeiros directos da instituição que durante séculos assassinou milhões de pessoas (índios, negros, judeus, bruxas, homossexuais, protestantes, etc.) e se calou perante o Holocausto. Numa viragem histórica nas suas prioridades, proclamam-se defensores da Vida. Sabendo que as mulheres podem ser presas caso pratiquem o clandestino aborto, manifestam os modernos bruxos um grande "amor e misericórdia" perante a situação das mulheres incriminadas. Curiosamente, os dicionários do dialecto falado no pequeno país, definem "amor" e "misericórdia" de forma absolutamente contrária à utilizada por eles, o que nos permite deduzir que, provavelmente, "Vida", no seu calão, não quer dizer "vida".

Na realidade, tudo indica que sob o lema da "Vida" se esconde o propósito conspirador de garantir o domínio público sobre os úteros das mulheres, a sua sexualidade e sobre o seu potencial reprodutivo. De outra forma não seria entendível que os movimentos civis promovidos pela seita, denominados "pró-Vida", falem de assuntos que nada têm a ver com a "vida", como sejam a homossexualidade, o divórcio, a pedofilia, etc. Estamos mesmo em crer que as atitudes destes sectores cabem na definição patológica de "inveja do útero". Num plano mais sociológico, tudo indica também que o principal propósito é a manutenção de uma instituição de inculcamento ideológico, de consumo e de divisão do trabalho conhecida como "família".

No mesmo país, existe uma sucursal civil e política da seita, denominada Partido Popular, dirigido por várias outras corporificações da repressão sexual. Este partido é parte minoritária da coligação no governo, mas exerce o controlo ideológico sobre este, uma vez que a parte maioritária é demasiado abrangente e centrista para ter verdadeiras opções ideológicas. Assim, e perante a ameaça do outro partido (denominado PSD) de descriminalizar os actos abortivos das mulheres ainda que mantendo a proibição do aborto, o referido PP invoca o pacto de sangue da coligação, que sacraliza um referendo sobre o assunto realizado em 1998.

Nesse referendo não houve quorum. Esse referendo não foi vinculativo. E o parlamento tem poderes para decidir sobre a lei do aborto mas não quer fazê-lo. Esta situação pantanosa é curiosamente partilhada pelos partidos que estão na esfera de influência da seita e por um outro que se encontra nos seus antípodas, denominado PCP; os primeiros dizem que o povo se expressou no referendo, pelo que não deve haver outro (também "referendo" deve querer dizer outra coisa); o último espera pacientemente por uma nova maioria parlamentar.

Mesmo que a alteração legislativa sugerida pelo PSD fosse para a frente, não só o aborto continuaria a ser proibido, como outras pessoas envolvidas em abortos que não as grávidas seriam perseguidas e punidas, quando, no caso das parteiras, estão a prestar o serviço clínico que o Estado se recusa a fazer.

Alternativamente, no país ao lado, existem clínicas onde se pratica o aborto, com base na mesma lei que vigora no pequeno país periférico. Numa reportagem televisiva pode-se constatar o aspecto civilizado das instalações e dos técnicos que lá trabalham. Quarenta e cinco por cento das clientes são do pequeno país periférico, um dos 3, entre os trinta e muitos países que constituem a Europa, onde o aborto é proibido (colocando assim o referido país no patamar civilizacional nº 3: "país em vias de desenvolvimento, com fraca expansão da racionalidade e limitações graves da liberdade").

Mas, além daquelas mulheres que recorrem às clínicas no país vizinho, o jornal de referência do pequeno país noticia que 11.000 mulheres recorreram num ano aos hospitais, na sequência de complicações geradas por abortos clandestinos.

Face à pressão do PP - que é, como quem diz, face à pressão da referida seita religiosa - o PSD recua e diz que a alteração legislativa só acontecerá via referendo mas nunca na actual legislatura.

Numa pequena cidade do pequeno país, várias pessoas são julgadas por aborto, um ano depois de o mesmo ter acontecido noutra localidade.

Conclusões: Sugerimos seriamente que os operativos da referida seita e do seu ramo político sejam acusados de associação criminosa e publicidade enganosa e confinados em campos de reeducação para a aprendizagem de ciências naturais, igualdade de género e sexualidade livre e responsável.

Nota: de modo a evitar interpretações erróneas, mais se declara que o pequeno país, cujo nome permanecerá secreto até à implementação das decisões que venham a ser tomadas, não é a Moldávia.»

mva | 22:50|