OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


5.12.03  

Bragança


(do livro Máscaras Portuguesas, de Benjamim Pereira)

Faz por esta altura vinte e tal anos estava eu debaixo de neve em Bragança. Fazíamos, eu e muitos colegas de licenciatura, umas pequenas pesquisas sobre as Festas dos Rapazes e as Festas de mascarados em geral, que acontecem nas aldeias ali à volta no período do Inverno. Como em todos os rituais de inversão, de tipo carnavalesco, em sociedades mais "tradicionais", a desordem parece ter o seu calendário bem certinho, como se aquilo que se louvasse fosse, afinal, o regresso à ordem. Mas a verdade é que, naqueles momentos rituais, as pessoas explicitam muito bem o que vai mal com as classificações que usam para se dividirem, hierarquizarem, etc. Gosto de pensar que é como se dissessem que "outro mundo é possível", para usar um slogan do campo oposto, a sociedade global.

Décadas depois, oiço falar de Bragança a propósito das mães da dita e das moças de alterne brasileiras. Por razões profissionais (mas, desta feita, por causa da pesquisa no Alentejo sobre masculinidade) sei muito bem o que são casas de alterne. E sei muito bem (ou julgo saber) o que sentem as mulheres que nelas trabalham (basicamente, são exploradas, têm que aturar homens muito pouco interessantes lá dentro e, na rua, mulheres que as tratam como aberrações).

Meses depois da globalização das mães de Bragança via Time, temos agora, como diz o Público de hoje, os "pais de Bragança" protestando contra a entrada de uma turma de ciganos numa escola local. O argumento, embora com alguns elementos específicos (por ex., a idade mais avançada dos "miúdos"), vai dar no mesmo que noutros casos: "não somos racistas, só não os queremos aqui". Subentende-se: não queremos os problemas que podem surgir. No limite, isto é compreensível, pois a exclusão gera comportamentos de desordem, de facto. Mas o que importa realçar é que o racismo é, na prática da vida em sociedade, isso mesmo - a existência de dois mundos, um de inclusão e um de exclusão. O racismo não é mera inclinação psicológica, defeito de carácter ou um conjunto de atitudes baseado apenas no preconceito "racial". Ele é o conjunto de relações sociais que perpetuam aquele esquema dual, numa escala hierárquica.

Soluções? Não sei. Experimente-se; aprenda-se com outras experiências. Mas quando me lembro dos rapazes envergando as suas máscaras nas aldeias ali à volta, não consigo deixar de pensar como seria engraçado que um dia Bragança experimentasse outras inversões. Por exemplo, que pudesse vir a ter uma presidente da Câmara brasileira, de profissão alternista, e um director de escola cigano, de profissão feirante.

PS: As mães de Bragança com certeza usam batôn e pintam o cabelo de loiro, se bem que tudo coroado com um cachecol Burberry's de padrão escocês beige, castanho e cinzento. Os pais de Bragança com certeza compraram o cachecol numa feira a um cigano, pois o produto original é demasiado caro. O cachecol foi presente de Natal. Nesse dia, a cinco km de distância, os rapazes duma aldeia correm atrás das moças vestidos de diabos. Depois da consoada, os pais de Bragança vão à casa de alterne. A rapariga brasileira dança com um deles, mas pensa no presente que mandou para a mãe em Cumuruxutiba do Sul. Um cigano tirita de frio no seu apartamento do bairro social. Não há-de uma pessoa de vez em quando resvalar para o neo-realismo...

mva | 18:19|