OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


31.12.03  

As Invasões Árabes.

Uma reportagem qualquer na SIC Notícias: entrevistas a jovens em vários países árabes e/ou muçulmanos: Líbano, Síria, Irão, etc. Sobre como vêem os seus países, o Islão, a decadência do mundo árabe e islâmico em termos históricos, a falta de esperança no futuro e nas lideranças, o trauma americano e ocidental, etc. Mas prestei atenção sobretudo ao "subtexto": é que a reportagem dava-nos imagens nos antípodas dos estereótipos sobre o mundo árabe e/ou islâmico. Nem fundamentalistas empedernidos, nem gente com ar de terrorista, nem o estereótipo português do marroquino chato atrás de nós pedindo (e oferecendo...) tudo com falsa simpatia. Não. O que eu vi foi jovens como os que se vêem no Bairro Alto, nas Amoreiras ou num cinema lisboeta. Muitos até com "melhor aspecto". Modernos, cosmopolitas, arejados. Até nessa coisa horrível que são as expectativas "raciais", gente (sobretudo no Irão, claro) bem mais "branca" do que a nossa... Alguns grupos de discussão conseguiam manter uma conversa bem mais inteligente e sustentada em argumentos e conhecimento do que acontece entre muitos dos meus alunos. E a maioria o que desejava era democracia, bem-estar, justiça social e diversidade: poder usufruir do mesmo que o Ocidente (que sentem como direito seu e algo que lhes é inerente, como humanos, é claro) e poder manter formas suas de vida, desde que compatíveis com noções genéricas de direitos humanos.

Isto fez-me pensar se, no século XXI, não estaremos perante uma realidade social de peso, a saber, uma espécie de classe, ou grupo social global, feito de gente com as seguintes características: urbanizada (a maior parte do planeta vive já em cidades), com acesso a informação, com desejos de consumo criativo (o consumo não é só alienação, é também apropriação e construção de identidades), e conectada (isto é, sabendo que existem outros e que lhes/nos são semelhantes). Esta "classe" - de que estes jovens são exemplo - é que pode ser um actor social mundial para os tempos que vêm aí. Talvez não se trate tanto das "multitudes" de que o discurso alterglobalização tanto fala , nem de polimorfas alianças de excluídos. Talvez se trate mais de algo semelhante ao que sempre aconteceu na História: quem faz as coisas avançar são as pessoas que têm um mínimo de conforto e informação e que se revoltam, eticamente, contra as injustiças à sua volta e contra as que continuam, apesar de tudo, a sentir, mesmo que em planos não materiais. Foi o que aconteceu com as "revoluções burguesas" na Europa de há séculos, afinal.

Isto é polémico, bem sei. Mas é que eu duvido - e infelizmente - que sejam os milhões de africanos infectados com HIV, os milhões de mulheres trabalhando em caves do sudeste asiático onde se montam computadores, ou os milhões de imigrantes clandestinos semi-escravos a darem a volta alterglobalizadora.

Naquela noite SICesca, gostei de ser invadido por aqueles "árabes"...

mva | 15:21|