OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


22.9.03  

O deserto e o esgoto

Uma das consequências da cultura católica profunda em que navegamos é a estética (e a ética...) dos extremos. Isso é mais evidente na sexualidade e nos afectos, até entre as sexualidades ditas alternativas. Ao longo de anos vi os mesmos padrões repetirem-se na maioria das pessoas: ou vivem as paixões e as relações como autênticas experiências místicas e transcendentes, ou vivem a promiscuidade como uma espécie de iconoclástica descida aos infernos. Ou fazem a travessia do deserto, a velha técnica purificadora dos místicos, ou afundam-se nos esgotos do que (elas) vêem como sendo sujo. O mesmo sistema dicotómico se aplica a apreciações da literatura e da arte, ao mundo da fantasia, à religiosidade, à sexualidade, etc., em suma, ao universo vasto da experiência sensorial e sensível. No campo do machismo isto tem a expressão clássica no duplo padrão da Mãe e da Puta, ficando tudo o resto remetido para a sensaboria e o desinteresse. No universo gay isto exprime-se na dicotomia entre o êxtase da paixão pura, dilacerante e incumprida (o insuportável "Morte em Veneza") ou as masmorras escuras e húmidas da promiscuidade anónima do sexo rápido. Tudo o que fica pelo meio é visto como uma sensaboria de casal. As pessoas sentem-se espartilhadas entre expectativas de paixões mais fortes e mais verdadeiras do que as dos outros, e incitamentos a muito sexo, com muita gente, com muitos orgasmos.

Atrever-me ia a dizer que esta lógica (?) profunda se manifesta também na política e visões do mundo: os desejos utópicos ou de manutenção absoluta da tradição e bons costumes, por um lado, ou da revolução absoluta para construir o mundo de novo são absolutamente irracionais e, em última instância, perigosas e violentas. Pelo meio, vota-se ao desprezo das coisas moles quem fale em reformismo, bom-senso, gradualismo, social-democracia ou semelhantes.

Que tristeza termos que viver com este "catolicismo" disseminado. Onde ficam, no meio disto, as obras de arte, as relações, as emoções e os projectos colectivos leves, simples, alegres, e divertidos onde se possa ser simplesmente humano e não uma personagem bíblica, um homem novo, um superhomem ou um nietzschiano?

mva | 15:46|