OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


22.9.03  

Anjos e demónios

O empregado do café onde vou - homem atento e inteligente - pergunta-me se li o editorial Saraiviano no "Expresso". Lá lhe expliquei que não compro o pasquim há muito tempo e que não percebo como ele sobrevive e lhe é dado crédito. Ele estava chocado porque aparentemente o editorial referia, a propósito do "caso do Parque" que, se havia figuras públicas "com desvios" envolvidas, era caso para saber onde andam agora e que consequências tem na governação a sua "tara". Daqui ao estado policial-moral são dois passos. Que eu saiba o caso do Parque tem a ver com prostituição. É altura de acabar com estas insinuações constantes de que a homossexualidade é um defeito e a "verdadeira" raiz de casos Casa Pia, etc. A pergunta que se impõe é: se Casas Pias, Parques, etc, tivessem a ver com relações heterossexuais, teriam a gravidade e a publicidade que têm? Claro que não. E isso é tremendamente assustador: pelo que revela de machismo e desprezo pelas mulheres, pelo que revela de homofobia e ignorância. Já está claríssimo que a condenação moral e social no caso Casa Pia passa sobretudo pela homossexualidade, com a "desculpa" da pedofilia e do abuso sexual de menores. Um dia destes, juízes, PJ, jornalistas, etc., deveriam ser confrontados com a coisa abjecta que estão a fazer ou a permitir que se faça: o incitamento ao ódio e à discriminação. Fazem-no com tanto mais despudor quanto usam as crianças como arma de arremesso, angelizando-as ao extremo. Para criar demónios é preciso inventar anjos. Acontece que nem uns nem outros existem. Apenas existem pessoas preconceituosas, ignorantes e/ou mal-formadas: e elas estão across the board, entre acusados e acusadores. Por fim, só num país bárbaro é que existe uma lei que especifica "actos homossexuais" como uma categoria punível e agravante. A UE já disse que essa barbaridade deve sair da lei. Para quando, então, o saneamento? É que, entretanto, é ela que permite que a homossexualidade seja livremente referida como incriminante. E não apenas, como deveria ser, o abuso sexual - seja de quem for.

mva | 15:12|