OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


24.7.03  

Mexicana

Esplanada da "Mexicana" (já de si...). Na mesa ao lado, dois exemplares de um novo tipo social que enche as ruas da cidade (e as páginas da net, sobretudo blogs...): são relativamente jovens, trabalham na área financeira e similares, num espectro que vai do caixa do banco ao big shot da especulação (eles têm divisões de classe, mas não querem falar disso, pois todos podem chegar ao topo se "sonharem" e "lutarem pelo sonho"), vestem fato, exibem muitos objectos de consumo de ponta e falam alto. Às tantas, um deles conclui um esforçado exercício filosófico dizendo: "Mas este é o melhor país para viver: não há regras nenhumas e faz sempre bom tempo". Como nota de rodapé, acrescentou que o único problema era a pequenez. Mas a razão para tal queixa prendia-se com a dificuldade em fazer não-sei-o-quê com umas "gajas" e a descrição metia internet pelo meio e alusões aos programas mais "grossos" da SIC Radical. Convenhamos que não era uma queixa sobre a falta de liberdades e anonimato, mas sim sobre a imperfeição na inexistência de regras...

Fui apanhado pela conversa quando tomava notas para um pequeno texto que queria, mas já não vou, escrever: era sobre a "Reprodução Activa da Ignorância (RAI)". A linda teoriazinha que eu estava a elaborar dizia mais ou menos isto: até há pouco havia sobretudo pessoas que reproduziam o senso comum e as ideologias hegemónicas em automático; ou, então, alguns radicais de extrema direita apostados no exagero (servindo assim para que os não radicais se apresentassem como pessoas tolerantes....). Agora parece haver cada vez mais gente apostada na cruzada do enevoamento das consciências: João César das Neves, desde logo, a partir do abuso que é a transformação duma certa teoria económica numa teoria social e ética universal; os movimentos "pela Vida", a partir do abuso da medicina e da biologia, interpretadas a bel-prazer da ideologia; a gente que promove a abstinência sexual; as criaturas que nuns blogs de direita reproduzem mentiras sobre a homossexualidade com o maior despudor; ou as ramificações desta tribo em organismos do Estado, como as coisas da "Família" e quejandas. Em suma, uma plêiade de gente que não está só a "reagir" ao progresso (o que as incluiria na velha categoria de "reaccionários"), mas sim a elaborar "pensamento", estratégias, planos de acção, no sentido de promover activamente mentiras para limitar as liberdades e direitos dos outros.

Os jovens do "campo financeiro" da Mexicana não cabem, é claro, nesta categoria. Mas o seu acesso à net, a sua necessidade social de, aqui ou ali, emitirem opiniões para parecerem seres pensantes, hão-de levá-los a ir buscar informação a algum lado (informação que não foram buscar à escola, a julgar pela sintaxe que usavam...). Lá estarão os Reprodutores Activos de Ignorância para lhes darem menus de demagogia (como, noutra esfera, Santana Lopes lhes deu o menu da política populista disfarçada de "fresca"), assim como a literatura côr-de-rosa e os livros de auto-ajuda estão nas bancas para "enriquecer espiritualmente" as namoradas (não estou a ser sexista, mas sim etnográfico: eles e elas é que parecem reproduzir esta divisão).

Vou fugir por uns dias largos. Sem rede. Volto lá para os meados de Agosto.

mva | 17:49|