OS TEMPOS QUE CORREM. Miguel Vale de Almeida


24.6.03  

Dados não são dados

Dois curiosos conjuntos de dados vieram nos últimos tempos contradizer o senso comum sem que, todavia, este se altere. Isto é algo que não cessa de me espantar. Ambos dizem respeito, de forma indirecta, à "sexualidade" e à política sobre/em torno dela. Há talvez um mês atrás um órgão competente divulgava os números sobre os casos reportados de abuso sexual de menores. Qualquer coisa como 600 num ano. Desses, qualquer coisa como 400 e tal tinham ocorrido no meio familiar, sendo os abusadores homens e as abusadas raparigas. Os restantes diziam respeito a rapazes vítimas de abuso por homens. Ontem mesmo, uma outra instância competente revelava que o "grupo" onde surgem agora mais casos de infecção pelo HIV é o dos heterossexuais.

Apesar destas informações, o senso comum continua a confundir alegremente o caso específico da Casa Pia (internato, e sobretudo masculino) com o abuso sexual em geral. A confusão presta-se, obviamente, a gerar uma outra, entre homossexualidade e abuso. Assim como continua, de forma difusa, a confundir sida e homossexualidade.

Uma visão mais inteligente destas coisas é precisa. No caso do abuso, há que dizer que este é intolerável, assim como é intolerável a confusão entre ele e homossexualidade. No caso do HIV/sida, há que dizer que é errado falar de grupos de risco, em vez de comportamentos de risco, sejam esses grupos os homossexuais ou os heterossexuais.

O problema é que parte da pedagogia democrática deve consistir em desligar o que não deve estar ligado. Assim, tacticamente, continua a ser importante dizer que a maior parte dos casos de abuso são sobre raparigas (quando, em rigor, deveria ser indiferente o sexo das vítimas. Mas não é, porque existe uma acrescida perseguição da homossexualidade, bem como desprezo pelo abuso de raparigas ou mulheres). Assim como continua a ser tacticamente importante referir que se inverteu a incidência de HIV/Sida entre homo e heterossexuais (quando, em rigor, deveria ser indiferente a orientação sexual. Mas não é, porque existe uma acrescida perseguição da homossexualidade).

(Já agora, um último ponto: num caso como noutro, ninguém parece preocupar-se muito com o óbvio, a saber, que os abusadores são na sua esmagadora maioria homens e que os comportamentos de risco são esmagadoramente masculinos. Ou seja: algo de errado acontece no universo de poder e irresponsabilidade da masculinidade. Não era já tempo de uma educação sexual que tivesse como um dos seus pilares começar a acabar com esta cretinice do género ou, pelo menos, a mudar a forma como os nossos rapazes são educados para a estupidez só porque têm um clítoris maior e mais visível que o das raparigas?)

mva | 10:55|